Os preços de eletricidade nos Estados Unidos vinham relativamente comportados até 2021. De lá para cá, a fatura subiu por um conjunto de choques que se somam: combustível mais caro, demanda estrutural em alta, rede envelhecida, clima extremo e capital mais caro. O think tank Resources for the Future (RFF) condensou bem essa fotografia num estudo de 21 de agosto de 2025: os autores mostram que os preços nominais subiram cerca de 27% desde 2019 (21% desde 2021) e que, mesmo descontada a inflação, várias regiões — com destaque para Maine e Califórnia — tiveram alta real expressiva; o “pulo” curto de 2021–2022 veio do custo de geração (combustível), enquanto a pressão mais persistente vem da rede, cujo custo por milha de transmissão quase dobrou desde 2013 e o de distribuição por circuito avançou cerca de 42%. Em termos simples: o gás natural deu o tranco inicial; a infraestrutura, mais cara para manter e modernizar, mantém a conta pressionada.
O elo combustíveis e tarifas, portanto, não é abstrato. A recomposição pós-pandemia e a guerra Rússia–Ucrânia encareceram o gás natural nos mercados internacionais e nos EUA, e como o gás ainda é pilar do despacho — muitas vezes como usina de ponta e reserva — esse choque atravessou a planilha de custos até chegar à tarifa. O RFF documenta a transferência do “susto do combustível” para a conta final, ao passo que os investimentos e a manutenção da rede explicam por que a inflação elétrica não arrefece tão rápido quanto a do gás.
No mesmo período, surge um novo vetor de demanda que muda o patamar de carga: a expansão de data centers. Em 2025, as utilities pediram aprovação regulatória para US$ 29 bilhões em aumentos tarifários apenas no primeiro semestre, 142% acima do mesmo período de 2024 — um salto associado, entre outros fatores, ao crescimento da infraestrutura de computação e aos custos de reforçar rede e geração para atendê-la. Esse número aparece primeiro no Financial Times e é corroborado por um relatório do grupo PowerLines; nas projeções oficiais, a EIA já prevê consumo recorde em 2025 e 2026 justamente por conta de data centers, eletrificação de aquecimento e transporte e maior uso comercial/industrial. Ou seja, não é só preço: é mais quantidade de energia que precisa ser entregue com confiabilidade.
Nesse contexto aparece, com frequência, a sigla PJM. Trata-se da PJM Interconnection, o maior operador de rede e de mercado de energia do país, que coordena a transmissão e os mercados atacadistas em partes de 13 estados e Washington, D.C., atendendo mais de 65 milhões de pessoas. Quando o PJM realiza leilões de capacidade a preços próximos do teto aprovado pelo regulador, como ocorreu em 2025, está nos dizendo que ficou mais caro garantir potência firme para a demanda que chega. A conta não aparece de um dia para o outro: entra nas tarifas conforme os ciclos regulatórios e os períodos de suprimento.
A infraestrutura de rede, por sua vez, é o “andar de baixo” que explica a persistência da alta. Transformadores e linhas instalados nos anos 1960–70 se aproximam do fim de vida útil e, mesmo antes disso, perdem margem térmica ou capacidade diante de uma rede mais exigente (mais fontes intermitentes, mais inversores, mais controle). O RFF mede o efeito do tempo e da complexidade: custos unitários de transmissão e distribuição subiram de forma relevante mesmo sem uma explosão de milhagem nova. E há o componente “gargalo”: quando a expansão de rede e as interconexões atrasam, a energia barata gerada longe do consumo não “chega”; os preços locacionais sobem e a diferença entre nós de rede se alarga. Em 2025, a EIA também registra picos regionais de preço no atacado associados a clima e capacidade.
O tema virou política pública no atacado. Em 18 de setembro de 2025, o Departamento de Energia (DOE) lançou a Speed to Power, uma iniciativa para acelerar projetos de geração e, sobretudo, transmissão, explicitamente para responder à carga de data centers, IA e veículos elétricos. O DOE abriu pedido formal de informações, mapeando projetos maduros, gargalos de licenciamento e de financiamento e onde o governo federal pode destravar capacidade mais rápido. Dois meses antes, em 23 de julho, o mesmo DOE havia cancelado uma garantia de empréstimo de US$ 4,9 bilhões para o Grain Belt Express, linha HVDC de quase 800 milhas pensada para levar vento barato do Meio-Oeste ao Leste. O recuo tem efeito prático: encarece o financiamento, empurra prazos e dá mais poder à oposição fundiária e estadual a grandes linhas — um contraste com o SunZia, no Oeste, que avança com contrato de serviços de longo prazo com a Hitachi Energy e financiamento privado robusto. A mensagem implícita: sem mão firme federal, inter-regionais viram maratonas de uma década, e o país preserva ineficiências caríssimas.
Do lado fiscal-regulatório, o Inflation Reduction Act redesenhou os créditos de eletricidade limpa de forma “neutra em tecnologia” a partir de 2025. “Neutro” aqui não é jargão: significa que o crédito não é mais concedido “porque é solar” ou “porque é eólico”, mas porque a usina gera com baixa intensidade de carbono, independentemente da tecnologia. O §45Y paga por MWh gerado; o §48E paga um percentual do CAPEX. Armazenamento passou a entrar no 48E mesmo quando standalone, sem estar ancorado a uma usina. O Tesouro detalhou as regras finais em janeiro, e a orientação no Federal Register estabelece o cronograma de implementação; o phase-out só começa depois de 2032, salvo se o setor atingir antes metas de emissões. Em termos econômicos, essa arquitetura melhora taxa interna de retorno de projetos limpos e desloca a “disputa de lobby tecnológico” para a métrica que importa: carbono por MWh.
O Bipartisan Infrastructure Law opera em outro flanco: ele paga a obra de rede. O programa GRIP (Grid Resilience and Innovation Partnerships) já selecionou dezenas de projetos, somando bilhões de dólares, para enterrar trechos vulneráveis, elevar subestações em áreas de inundação, recondutorar linhas aumentando capacidade e instalar controle dinâmico (como dynamic line rating), tudo com o objetivo de suportar clima extremo e uma carga em alta por IA, eletrificação e nova manufatura. O Transmission Facilitation Program (TFP), por sua vez, usa contratos de capacidade de até 40 anos (limitados a 50% da capacidade da linha) para “âncorar” inter-regionais — uma ferramenta financeira destinada justamente a reduzir o risco de demanda nos primeiros anos e, assim, baratear o custo de capital. Esse conjunto explica por que resiliência e expansão de rede aparecem como linha de custo nas tarifas, mas também como seguro contra picos e interrupções.
Dito isso, o que já parece embutido nos preços e no noticiário corporativo? A demanda de data centers e a escalada de CAPEX de rede — vide pedidos tarifários recordes em 2025 — e a melhora de retorno em projetos limpos sob o 45Y/48E. O que ainda guarda assimetria? Primeiro, transmissão inter-regional: com o SunZia avançando e o Grain Belt em compasso de espera, qualquer sinal de aceleração federal (licenças, capacidade-âncora) reprecifica a cadeia de EPC, torres, transformadores e HVDC. Segundo, armazenamento: onde o mercado de serviços ancilares paga de fato por pico, frequência e adiamento de rede, a receita de baterias salta e a IRR sobe; a redação “tech-neutral” do 48E, que inclui storage standalone, consolida essa economia. Terceiro, eficiência e resposta da demanda: ainda subalocadas nas carteiras, embora muitas vezes mais baratas do que construir geração e linhas novas.
No campo tecnológico, três frentes merecem lugar no texto — não como glossário solto, mas onde se encaixam na narrativa. A primeira é HVDC: linhas em corrente contínua de alta tensão reduzem perdas em longas distâncias, conectam regiões assíncronas e oferecem controle de fluxo — exatamente o que falta quando se tenta levar vento/sol baratos de áreas remotas a grandes centros. O SunZia, um link ±525 kV de cerca de 550 milhas entre Novo México e Arizona, ilustra por que contratos de longo prazo com fornecedores (caso da Hitachi Energy) e financiamento privado estável fazem diferença. O Grain Belt mostra o inverso: sem a garantia do DOE, o custo do dinheiro sobe, o cronograma escorrega e a oposição local ganha tração — e assim o país segue pagando caro por congestão.
A segunda é hidrogênio. A política pública ensaiou uma trilha pragmática em janeiro de 2025, quando o DOE fechou uma garantia de US$ 1,66 bilhão para a Plug Power construir até seis plantas de H₂ limpo, começando no Texas, além das já operacionais na Geórgia, Tennessee e Louisiana. Qual o recado? Projetos andam quando há cadeia integrada (produção, liquefação, distribuição), clientes industriais e âncora contratual; programas de hubs regionais ainda passam por revisão e cortes, o que reforça a necessidade de offtake firme. Nesse arranjo, incumbentes como Air Products e Linde seguem relevantes pela logística e pela base de clientes. Em paralelo, a EIA projeta demanda total de eletricidade em máximas históricas em 2025–2026, o que, se confirmado, abre espaço para usos de H₂ em cargas industriais e backup, mas não sem incerteza regulatória.
A terceira é o nuclear modular. Em 29 de maio de 2025, a reguladora NRC aprovou o design de 77 MWe da NuScale — um marco técnico-legal que, sozinho, não resolve a planilha. O projeto municipal de Utah foi cancelado por custo, e a próxima etapa passa por clientes-âncora (processo térmico, data centers), combustível HALEU confiável e regras previsíveis para resíduos. Até lá, a leitura racional é tratar o segmento como opção (exposição a fornecedores e serviços do ecossistema), não como base da carteira.
A conta subiu por demanda crescente, rede insuficiente, gás caro e juros altos. O futuro depende de três chaves: política federal para transmissão, mercados que remunerem storage por todos os serviços e programas de eficiência. Sem rede, nada fecha; sem storage e eficiência, pagamos mais.
Sensacional o conteudo Jean! Penso que ETFs de energia e de robotica deveriam estar na pauta dos investidores!
Muito obrigado. Não estou familiarizado com cases de robótica. Mais uma para colocar na minha lista.