O FESTIVAL BILIONÁRIO DAS EMENDAS PARLAMENTARES: COMO O CONGRESSO CONTROLA 25% DO ORÇAMENTO NACIONAL SEM TRANSPARÊNCIA
COMO DEPUTADOS E SENADORES CONTROLAM UM “ORÇAMENTO PARALELO” QUE DECIDE O FUTURO DOS MUNICÍPIOS ENQUANTO O STF TENTA IMPOR LIMITES
Em uma pequena cidade de Roraima chamada São Luiz, com apenas 7.315 habitantes, cada morador teoricamente recebeu R$8.244 em recursos federais via emendas parlamentares em 2023. Este valor astronômico contrasta drasticamente com Salvador, onde cada habitante teria direito a apenas R$6,331. No Amapá, reduto do senador Davi Alcolumbre, o município de Tartarugalzinho embolsou impressionantes R$87,5 milhões, equivalente a R$6.765,42 por habitante.
Estamos falando de um montante que alcançou R$44,9 bilhões em 2024 e deve superar os R$50 bilhões em 2025 – aproximadamente 0,5% do PIB nacional ou um quarto de todos os recursos discricionários do orçamento federal. Para ter uma ideia, isso supera o orçamento de investimento de diversos ministérios importantes.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro Flávio Dino tentam impor limites e transparência a este sistema, uma pergunta simples permanece sem resposta satisfatória: como chegamos ao ponto em que deputados e senadores controlam fatias tão generosas do orçamento nacional, muitas vezes sem a necessidade de prestar contas sobre o destino final desses recursos?
A ANATOMIA DE UM SISTEMA QUE FRAGMENTA O PODER ORÇAMENTÁRIO
Para entender a dimensão do problema, precisamos primeiro compreender o que são exatamente as emendas parlamentares. Em termos simples, são instrumentos que permitem ao Congresso Nacional influenciar o orçamento anual, adicionando, removendo ou modificando itens do projeto orçamentário enviado pelo Executivo. Em teoria, isso soa como um mecanismo saudável de equilíbrio entre os poderes – afinal, não seria democrático que os representantes eleitos pelo povo pudessem direcionar recursos para atender as necessidades de suas bases eleitorais?
O problema não está no conceito, mas na execução. O sistema orçamentário brasileiro se transformou em algo similar a um restaurante onde certos convidados têm direito a um cardápio exclusivo com pratos especiais, enquanto a maioria precisa se contentar com o menu do dia. Cada parlamentar possui uma cota garantida de recursos que pode direcionar conforme seus interesses políticos, sem necessariamente considerar um planejamento estratégico nacional ou mesmo critérios objetivos de necessidade.
Existem quatro tipos principais de emendas parlamentares, cada uma com suas peculiaridades:
- Emendas individuais (RP6): São impositivas, ou seja, o governo é obrigado a pagá-las. Cada parlamentar tem direito a indicar um valor específico (em 2024, aproximadamente R$37,8 milhões para deputados e R$69,6 milhões para senadores), sendo que metade deve ser obrigatoriamente destinada à saúde. O total previsto é de R$25 bilhões em 2024;
- Emendas de bancada estadual (RP7): Apresentadas coletivamente pelos parlamentares de cada estado, tornaram-se impositivas desde 2019. Em 2024, somam R$11,3 bilhões;
- Emendas de comissão (RP8): Não são impositivas e são indicadas por comissões temáticas do Congresso. Este tipo de emenda teve um crescimento explosivo, passando de R$329,4 milhões em 2022 para impressionantes R$16,6 bilhões previstos em 2024 (antes dos vetos presidenciais);
- Emendas de relator (RP9): Foram declaradas inconstitucionais pelo STF em 2022 por violarem princípios de transparência e publicidade. Estas emendas permitiam que parlamentares destinassem verbas sem serem identificados, sendo amplamente utilizadas em negociações políticas.
A Emenda Constitucional 86/2015 foi o ponto de inflexão neste sistema ao tornar as emendas individuais obrigatórias, com limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida. Desde então, o valor total das emendas impositivas triplicou, ampliando significativamente o poder dos parlamentares sobre a execução do orçamento.
Isso seria menos problemático se houvesse critérios técnicos claros para a distribuição desses recursos. Mas, como observa Cléo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), “essas emendas não entram na lógica do Plano Plurianual (PPA). E elas não entram nem em lógica populacional. A gente já viu várias distorções de municípios que têm população pequena e que recebem um recurso altíssimo, enquanto municípios com maior população, com maiores necessidades, não recebem nada de emenda.”
DE INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO A MOEDA DE TROCA: O BALCÃO DE NEGÓCIOS DO CONGRESSO
Se a arquitetura do sistema já é questionável, sua operação prática é ainda mais preocupante. As emendas parlamentares transformaram-se na principal moeda de troca nas negociações políticas entre Executivo e Legislativo, criando uma dinâmica que distorce o processo democrático e compromete a eficiência da máquina pública.
Durante o governo Bolsonaro, o valor médio anual gasto em emendas praticamente triplicou, saltando de R$11 bilhões sob Michel Temer para R$27,2 bilhões. Nos anos de 2020 e 2021, após a implementação das emendas de relator, a média chegou a impressionantes R$34,4 bilhões.
O economista Marcos Mendes classifica o valor de R$50 bilhões em emendas como “fora de propósito” e destaca que essa proporção sobre o investimento do Executivo não tem paralelo em democracias desenvolvidas.
AS NOVAS MANOBRAS: DAS EMENDAS SECRETAS AO “PIX PARLAMENTAR”
Após o STF declarar inconstitucional o “orçamento secreto” em 2022, o Congresso encontrou alternativas. Metade do montante previsto (R$9,8 bilhões) foi convertido em emendas individuais, enquanto o restante voltou para o caixa dos ministérios através de outras rubricas.
Uma das manobras mais criativas foi turbinar as emendas de comissão, que cresceram mais de 5.000% em apenas dois anos.
Porém, a inovação mais controversa foi a criação das “emendas Pix” – transferências diretas para estados e municípios sem a necessidade de convênios formais. Em 2024, estas emendas representam cerca de R$8,2 bilhões. A grande polêmica está na falta de rastreabilidade: sabe-se qual parlamentar enviou o dinheiro e qual município recebeu, mas não como os recursos foram aplicados.
A LUTA DO STF CONTRA A CAIXA-PRETA ORÇAMENTÁRIA
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, tem liderado uma cruzada para impor limites e transparência ao sistema. Em agosto de 2024, suspendeu a execução das emendas impositivas e determinou que as “emendas Pix” deveriam ter “absoluta vinculação federativa” – parlamentares só poderiam indicá-las para o estado pelo qual foram eleitos.
Em dezembro, Dino suspendeu o pagamento de R$4,2 bilhões em emendas de comissão por suspeitas de irregularidades e determinou que a Polícia Federal investigasse o fluxo desse dinheiro. A reação do Congresso foi imediata e contundente, com Arthur Lira (PP-AL) criticando duramente a decisão.
DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL: O MAPA POLÍTICO DOS RECURSOS
A distribuição das emendas revela as dinâmicas de poder no Congresso e no sistema político brasileiro como um todo.
Em 2024, deputados do PT tiveram o maior volume de emendas individuais liberadas na Câmara (R$617,8 milhões), seguidos pelo MDB (R$450,1 milhões) e União Brasil (R$446 milhões).
Para 2025, o cenário muda drasticamente: o PL comandará R$6,7 bilhões em emendas de comissão – 77 vezes mais que o PT, que terá apenas R$87,5 milhões. Esta diferença deve-se principalmente ao controle da Comissão de Saúde, que terá R$4,98 bilhões à disposição.
POR UM NOVO PACTO ORÇAMENTÁRIO
O sistema de emendas parlamentares no Brasil chegou a um ponto crítico que exige não apenas ajustes pontuais, mas uma reforma profunda. A batalha por transparência travada pelo STF é importante, mas insuficiente para resolver as distorções estruturais desse modelo.
Não se trata de negar a legitimidade do Poder Legislativo em influenciar o orçamento nacional – este é um direito e até um dever dos representantes eleitos. O problema está no modelo atual, que combina valores excessivamente altos, critérios pouco técnicos de distribuição, mecanismos frágeis de controle e uso político descarado dos recursos.
Um novo pacto orçamentário precisaria equilibrar melhor as prerrogativas do Executivo e Legislativo, garantindo tanto a visão estratégica de planejamento nacional quanto o atendimento às demandas locais legitimamente representadas pelos parlamentares.
Isso passaria por estabelecer limites mais razoáveis para o montante total das emendas, criar critérios técnicos para sua distribuição (considerando indicadores como população, IDH e déficits de serviços públicos), fortalecer os mecanismos de transparência e controle, e desvincular sua liberação de negociações políticas pontuais.
Enquanto isso não acontece, bilhões de reais continuarão sendo distribuídos pelo país através de um sistema que mais parece uma loteria política do que um instrumento racional de planejamento e desenvolvimento. E nós, cidadãos, seguiremos vendo cidades como São Luiz, em Roraima, recebendo centenas de vezes mais recursos per capita que grandes capitais, sem compreender claramente os motivos dessa alocação ou os resultados concretos que ela produz.
A verdade incômoda é que o atual sistema de emendas parlamentares reflete uma deformação mais ampla do funcionamento de nossa democracia, onde o interesse público muitas vezes se perde em meio à lógica de sobrevivência política individual e arranjos de curto prazo. Corrigir essas distorções é um desafio que transcende governos específicos e exigirá um compromisso sério com uma governança pública mais eficiente, transparente e orientada a resultados.
Não se trata apenas de uma questão técnica ou orçamentária, mas de um pilar fundamental da qualidade de nossa democracia. Afinal, um país que permite que R$50 bilhões sejam distribuídos com critérios questionáveis, enquanto faltam recursos para áreas essenciais, precisa urgentemente repensar suas prioridades e seus mecanismos de tomada de decisão sobre o gasto público.
uito obrigado pelo compartilhamento de informações relevantes. Ótimo texto como sempre Anderson.
Abs!