Desde a crise de 2008, o sistema financeiro dos Estados Unidos vive em um novo regime: o da liquidez permanente.
Foi nesse momento que o Federal Reserve passou a atuar não apenas como banco central, mas como o coração circulatório de todo o sistema financeiro.
Quando a crise dos subprimes paralisou o crédito interbancário, o Fed criou as reservas remuneradas, expandiu seu balanço e inaugurou os programas de repurchase agreements (repo) e, mais tarde, de reverse repo (RRP) — mecanismos que dariam origem ao sistema de liquidez que conhecemos hoje.
O repo tradicional é o instrumento que permite que bancos e fundos emprestem dinheiro uns aos outros de forma segura, usando títulos do Tesouro como colateral.
Mas quando há desconfiança ou falta de reservas, o mercado interbancário trava.
Foi para isso que o Fed criou o Standing Repo Facility (SRF), uma válvula de emergência que garante que, mesmo sob stress, qualquer banco possa trocar Treasuries por dinheiro overnight.
Na outra ponta, o Reverse Repo Facility (RRP) serve como dreno: quando há excesso de caixa no sistema, os fundos o estacionam diretamente no Fed, retirando liquidez de circulação.
Durante os anos de Quantitative Easing (QE), o RRP cresceu até atingir mais de US$ 2,5 trilhões — reflexo do excesso de reservas.
Mas, desde o início do QT (Quantitative Tightening), esse montante vem caindo de forma contínua.
E o que parecia apenas uma normalização acabou se tornando um termômetro crítico da liquidez.
Agora, no fim de 2025, o RRP praticamente secou, o SRF atingiu recorde histórico e as reservas bancárias encostaram no limite inferior que o Fed considera seguro — algo entre US$ 2,5 trilhões e US$ 3,2 trilhões, segundo estimativas de economistas do próprio Federal Reserve.
Esses três instrumentos — RRP, SRF e reservas — contam uma mesma história: o sistema financeiro está com sede.
O Ponto de Fratura
Em 31 de outubro, o uso do SRF ultrapassou US$ 50 bilhões — o maior volume já registrado.
Esse número, por si só, é o sinal clássico de que as reservas livres acabaram.
Ainda assim, parte desse uso pode refletir operações de arbitragem conhecidas como “basis trades” — em que fundos captam no SRF para lucrar com diferenças entre futuros e Treasuries —, o que torna o dado misto entre stress real e uso oportunístico.
Mesmo assim, o aumento consistente reforça que a liquidez interbancária espontânea está rareando.
O que se vê agora é o mesmo padrão que antecedeu as intervenções de 2019, 2020 e 2023: bancos recorrendo ao Fed para se financiar porque não há mais liquidez interbancária espontânea.
Dessa vez, o Fed agiu antes que o pânico fosse visível.
Em 29 de outubro, Jerome Powell anunciou que o QT terminará oficialmente em 1º de dezembro de 2025, e que o banco central voltará a reinvestir integralmente os vencimentos de Treasuries, priorizando T-Bills.
Foi um movimento discreto, mas decisivo.
O Fed não chamou isso de QE, e tecnicamente não é, mas na prática é um afrouxamento preventivo, uma injeção de liquidez antes da “febre”.
O banco central parece ter aprendido a agir antes da quebra visível: deixar o sistema secar completamente custa mais caro do que admitir o fim do aperto.
A Doença e a Cura
A doença é estrutural: o sistema depende da liquidez do Fed para funcionar.
Cada rodada de QT drena reservas e força o mercado a se financiar mais caro, comprimindo bancos, dealers e fundos.
Quando o Reverse Repo Facility seca e o Tesouro continua emitindo centenas de bilhões para rolar uma dívida que já supera US$ 35 trilhões, o sistema entra em disputa pelo mesmo dólar.
O dinheiro que antes circulava livremente entre bancos e fundos precisa agora financiar o governo e não sobra o bastante para manter o resto da engrenagem girando.
As taxas sobem, os spreads se abrem, e o ruído das engrenagens volta a ser audível.
É o som de um sistema que perdeu o fôlego, dependente de um oxigênio que só o Fed pode fornecer.
A cura, por sua vez, é o retorno da liquidez. Não por meio de um resgate explícito, mas por ajustes técnicos: reinvestimentos, cortes marginais de juros e facilidades temporárias de funding.
Em 2019, o Fed chamou isso de “operações técnicas”. Em 2023, o “Bank Term Funding Program”. Agora, o nome é “reinvestimento pleno”. Mas o efeito é o mesmo: injeção indireta de liquidez que estabiliza o mercado e reprecifica o risco.
O Que o Fed Costuma Fazer — e o Que Vem Depois
Em todos os episódios anteriores, o roteiro foi idêntico.
Primeiro, a drenagem de liquidez provoca stress silencioso — repo rates sobem, FRA-OIS abre, bancos menores sentem.
Depois, o Fed nega que haja problema.
Dias depois, vem a facilitação “temporária” — que se transforma em um novo regime monetário.
Em 2008, a crise do crédito forçou o QE1.
Em 2019, o stress do repo levou ao “QE não-QE”.
Em 2020, a pandemia desencadeou o QE infinito.
Em 2023, a quebra do SVB criou o BTFP.
E agora, em 2025, o QT termina antes da próxima rachadura.
Em cada uma dessas viradas, o padrão foi o mesmo: os yields longos caíram, o dólar perdeu força e os ativos de duration longa e growth lideraram os ganhos.
O “trade da liquidez” sempre nasceu dessas inflexões: momentos em que o Fed muda de dreno para irrigador.
O Trade de Liquidez
O liquidity trade é simples de entender, difícil de executar.
Quando o Fed expande o balanço, ou apenas deixa de contrair, o custo do dinheiro cai e o múltiplo dos ativos sobe.
Os primeiros a reagir são os Treasuries longos e os setores sensíveis à taxa de desconto: tecnologia, utilities e real estate.
Na sequência, vêm o ouro, os metais e, mais tarde, os ativos de risco cíclico.
Nos ciclos anteriores, o “duration” foi o primeira a disparar. Ou seja: os preços dos títulos longos começaram a subir fortemente, antecipando o pivô de política monetária.
O ETF TLT subiu 22 % em três meses após o pivô de 2019; o ouro avançou 30 % após o início do QE de 2020; e as big techs lideraram o rali pós-SVB (Silicon Valley Bank) de 2023.
O motivo é estrutural: o mercado reprecifica o valor do tempo antes de reprecificar o valor dos lucros.
Agora, os mesmos setores voltam a se mover.
Os fluxos recentes mostram aumento em fundos de Treasuries longos, growth e metais preciosos.
Não é coincidência: o mercado está lendo o gesto do Fed como o início de um novo ciclo de liquidez.
Buffett e o Jogo do Tempo
Enquanto isso, Warren Buffett observa.
A Berkshire Hathaway acumula hoje mais de US$ 380 bilhões em caixa — o maior valor da história da companhia.
Esse movimento não é aleatório: Buffett costuma aumentar o caixa quando o custo de oportunidade é alto e o risco de crédito está sendo mal precificado. Foi assim em 2007, em 2018 e em 2021.Ele prefere ficar parado quando o mercado está eufórico e só se move quando o Fed muda de direção.
É plausível que Buffett esteja esperando a disfunção que obriga o Fed a agir.
Quando a liquidez volta, mas o mercado ainda precifica medo, é ali que ele compra.
Foi assim quando adquiriu participações em bancos em 2009, na Apple em 2016 e em energy em 2020.

Ele não busca o pânico, mas o pós-pânico com liquidez — o momento em que todos ainda estão olhando para trás e o dinheiro novo já começou a entrar.
Os Sinais Que Antecedem o Pivô
Para identificar quando o Fed realmente está virando a chave, há cinco indicadores históricos que sempre antecedem a intervenção:
1. Spread FRA-OIS acima de 40 bps – mostra stress de funding.
2. SRF acima de US$ 30–50 bi diários – indica reservas no limite.
3. Reservas totais abaixo de US$ 3 tri – o “nível crítico” do sistema.
4. Falhas em leilões de Treasuries ou aumento da bid-ask spread.
5. CDS de bancos regionais acima de 150 bps.
Quando três ou mais desses sinais aparecem juntos, o Fed age em dias, não em meses.
Neste momento, já temos dois: SRF elevado e RRP quase zerado.
Se as reservas não voltarem a subir nas próximas semanas, a probabilidade de uma nova facilitação de liquidez é alta.
Quando e Como se Posicionar
A história mostra que o melhor ponto de entrada não é o pânico — é a confirmação.
Após o anúncio do Fed, há sempre um período de transição em que o mercado duvida da eficácia da medida.
É nesse intervalo que os retornos ajustados ao risco são maiores.
A sequência tática tradicional é:
Duration primeiro – Treasuries longos e fundos de renda fixa estendida.
Growth depois – tecnologia, semicondutores, inovação.
Ouro e metais – como hedge à expansão monetária.
Risco cíclico por último – small caps e crédito corporativo, quando as reservas já estiverem subindo.
A cada ciclo, esse movimento levou de 3 a 6 meses, com retornos expressivos para quem esperou os sinais técnicos antes de agir.
Conclusão — O Pivô Invisível
O Federal Reserve parece ter aprendido a agir antes da quebra visível.
Ao encerrar o QT em dezembro, ele evita a crise que ele mesmo criaria se insistisse no aperto.
É uma intervenção sutil, um QE disfarçado de manutenção, mas suficiente para reverter a drenagem de liquidez que vinha corroendo o sistema.
O Fed está dando o remédio sem admitir a doença.
E, como sempre, quem observa o comportamento da liquidez, não as manchetes, entende o que realmente está acontecendo.
Os sinais já estão visíveis: SRF recorde, RRP exaurido, reservas em declínio e um anúncio de fim de QT.
Se a história servir de guia, estamos novamente na beira de um trade de liquidez global.
Buffett, com seu arsenal de caixa, parece saber disso há meses.
O resto do mercado ainda finge que não percebeu.
A liquidez está voltando.
A diferença é que, desta vez, o Fed tentou curar o sistema antes que o paciente entrasse em coma.






Muito bom post Jean…obg por compartilhar
Excelente post meu brother! Nossa conversa rendeu um belo post! o que uma espera no aeroporto nao desenvolve a mente humana…obviamente com nossa querida amiga AI em acao para nos ajudar! Ficou muito bom!
Brainstorming com ela é muito bom.
Muito obrigado, meu amigo!!
Muito bom! Obrigado!
Parabéns. Ótima explicação.
Top, da teoria à prática. Muito didático e prático. Esse trade de liquidez é de impacto significativo nos mercados. Podes comentar do possível impacto no dxy.
Muito obrigado!
Excelente ponto. O trade de liquidez afeta diretamente o DXY, porque toda vez que o Fed muda o regime de liquidez (fim de QT ou início de QE), o excesso de reservas tende a enfraquecer o dólar em termos relativos.
Historicamente, isso acontece porque…
1. A oferta de dólares cresce — mais liquidez doméstica significa mais dólares disponíveis globalmente.
2. O diferencial de juros cai — cortes de juros ou reinvestimentos do Fed reduzem o prêmio em relação a outros bancos centrais.
3. Fluxos giram para risco — investidores buscam ativos de maior retorno fora dos EUA (commodities, emergentes, ouro, etc.).
Nos ciclos de 2019 e 2020, o DXY recuou cerca de 8–10 % após o pivô de liquidez.
Se o movimento atual seguir o mesmo padrão, fim do QT, manutenção de T-Bills e possível expansão do balanço, o viés natural é de enfraquecimento gradual do dólar, especialmente frente a moedas ligadas a commodities.
Por favor, leia os comentários do último para o primeiro.
Mais uma vez, muito obrigado!
Desconsidere esse último comentário.